sábado, 28 de fevereiro de 2015

Entre Braços e Abraços...

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Vivo dizendo que conviver com crianças "fora do padrão" é algo que beneficia muito mais aos ditos "normais". E há uns dias atrás, aconteceu algo comigo que materializou bastante essa teoria, e por isso mesmo, acho válido e até meu dever compartilhar. Confesso que sempre tenho um pouco de receio de magoar pessoas quando falo de assuntos mais delicados, mas neste caso, sinto-me um pouco mais confortável, afinal também tenho um filho "despadronizado", incluído em algum lugar do vasto espectro autista.

Então, como eu dizia, pessoas precisam aprender a respeitar pessoas, sejam elas de outra cor, outra religiosidade ou outra região do país; sejam elas sem um braço ou uma perna, obesas ou esquálidas; sejam elas com síndromes de Down ou de Asperger, sejam autistas... respeitar quer seja rica, pobre, mestranda ou analfabeta, masculinas ou masculinizadas, femininas ou feminilizadas; quer tenham uma opinião diferente sobre aborto, celibato ou política, quer sejam diferentes...

O que acontece é que muitos adultos (diria, a maioria, inclusive eu...isso deve ser um exercício diário de cada ser humano) têm extrema dificuldade de enxergar o outro como "igual", e até mesmo de entender que um dia pode estar REALMENTE e materialmente no lugar daquele outro, visto que "o mundo gira" e "o futuro a Deus pertence". Mas acredito plenamente que esse exercício pode ser facilitado e até espontâneo aos cidadãos das próximas gerações, se começarmos a viabilizar convivências desde a infância. Na verdade, esse é um processo natural, e que só não existe há muito tempo, porque o homem modificou o traçado social, incluiu a segregação em tipologias, em "panelas"...e isso, como diria a beata "não é de Deus", e eu complemento: "nem é do homem", eu acredito no homem...

Neste dia, eu estava com meus filhos (o menino de 6 e a menina de 3) e de repente a Bela* surgiu ao nosso lado e tentou abraçar minha filha, que entretanto se esquivou de imediato, olhando para seu braço. Logo, ajoelhei-me procurando me equiparar a altura de ambas, e pedi: "Filha, dê um abraço na coleguinha". Mas ela se afastou um passo a mais.

Nessas horas, temos apenas décimos de segundos para pensar, e infelizmente não somos profissionais em psicologia infantil, mas o que me ocorreu de instante foi abraçar Bela, que não apenas recebeu e retribuiu meu abraço, como também me beijou a face.

Olhei para minha filha, observadora e inocente, predestinada a ser lapidada. Tamanha obra de arte seria responsabilidade minha... Senti que aquele era um momento-marco nesse longo e delicado processo, que é a construção de seres humanos.

Despedi-me de Bela, que acenava sorridente, enquanto meu menino (só então percebi) apontava discretamente o polegar para o braço de Bela, como faria da mesma forma, se visse um cavalo voando no céu, ou uma novidade qualquer, algo a ser explicado...

Bela é uma menina com um detalhe físico diferente, não tem uma das mãos... ela já apareceu nas minhas publicações desse blog, e hoje, novamente ela faz parte da nossa história. E apesar do receio de que seus pais venham a ler este relato e identifiquem sua criança e se sintam magoados com algo, eu sinto necessidade de persistir nessas linhas, porque eu acredito que fui vitoriosa na minha batalha, que é falar as coisas certas nas oportunidades certas, a fim de construir um mundo (ao menos no futuro) mais humanizado, menos fútil, mais generoso, menos materialista.

Fomos embora dali, mas a lição foi terminada dentro do carro, na frente da nossa casa. Segui no trajeto de 10 minutos pensando milimetricamente no que ainda precisava ser dito, sobre o abraço negado por minha filha, e sobre a estranheza que o braço interrompido ainda causa no meu filho. E foi algo parecido com o diálogo a seguir:
-Vocês sabem a Bela? Ela é diferente, não tem um dos braços...
-Não é braço, mamãe. É mão... (Corrigiu-me meu menino)
-Ah, é verdade. Pois então, ela só não tem uma das mãos, mas é uma pessoa como você, e você (olhei pra minha filha)... ela é igual a gente. Existem pessoas sem pernas também, ou porque nasceram sem elas, ou porque a perderam em um acidente de carro, por exemplo. (E diante da nuvem pensativa que visualizei nos olhos do meu filho, detalhei um pouco mais a explicação...) Quando alguém sofre um acidente de carro, pode se machucar bastante, sua perna ficar ferida... machuca, sai sangue, e as vezes perde a perna. Mas isso não aconteceu porque ele quis, foi um acidente. E assim mesmo esse alguém continua sendo a mesma pessoa de antes, a perna sara, deixa de doer, mas continua sem a perna. (depois de confirmar no seu olhar que a informação tinha sido compreendida até ali, continuei...) A Bela não tem uma mão, não foi escolha dela não ter uma mão, e ela pode ficar triste por você apontar pra o braço dela...
E ele falou "Mamãe, eu só quis mostrar a você que ela não tinha uma mão"...

-Eu sei, meu filho, a mamãe entendeu. Mas eu queria que vocês entendessem também que ela é igual a vocês. Ela pode se divertir, brincar, correr, sorrir, ser amiga...

Então, ele sempre questionador, ao lado de minha caçula que apenas escutava, me perguntou preocupado:
-Mamãe! ... e se ela precisar da mão?
-Ela poderá usar sua outra mão, filho...
-E se ela precisar das duas mãos???
-Aí...ela poderá pedir ajuda de um amigo, como você... (e ele sorriu) Daí pra frente, foi um gancho de aproveitamento em causa própria) Por isso é importante a gente ter amigos filho, porque um dia podemos precisar da ajuda de alguém...
Enquanto eu os tirava do seus assentos, ele descobriu com a felicidade característica de sempre: "Mamãe, eu já sei! Minha diferença é que eu não falo direito!"... e eu tive que confirmar, ele não deixava de ter razão... Mas ele perguntou: "Qual a diferença da "Ía" (como chama a irmã) ?
Nessa hora, o esforço por uma resposta foi o maior da jornada, mas respondi mediocremente, entre risadas:
-É que sua irmã chora muito, não é, minha filha? - Respondi me dirigindo a minha pequena, que não ficou muito satisfeita, mas foi o que consegui encontrar, como eu disse, mediocremente... 
E você? O que te faz diferente? 
  

* Bela é um nome imaginário, denominado pela autora deste texto

EDITADO POSTERIORMENTE:

Dando prosseguimento nessa postagem, tenho que contar o resultado do meu abraço na "Bela" e da conversa... Isso aconteceu na sexta-feira, e hoje, terça-feira, a Bela veio abraçar minha filha novamente, e minha filha a ABRAÇOU com todos os braços que um belo e sincero abraço merecem....e sinceramente eu fiquei emocionada, foi mais rápido do que eu imaginava, e nunca vou esquecer disso, até pra deixar bem comprovado pra mim como mãe, que nada mais valioso que o exemplo!  Sem falsa demagogia, gente, vamos construir seres humanos melhores pras próximas gerações...eu estou empenhada nisso, o que estiver ao meu alcance eu farei... e não falo de ter pena de ninguém, pois ninguém é digno de pena (ou todo mundo seria digno de pena, talvez fosse a expressão correta), mas como seria bom, se os filhos autistas, cadeirantes, surdos, mudos, downs, pudesse ser abraçados sem pena, pudessem ter seu potencial à frente de suas deficiências, se pudessem ser valorizados e amados... e aquele abraço que minha filha deu nela, não teve medo, nem pena, foi sincero...ela quebrou a estranheza que sentiu antes, porque eu tirei o medo dela, quando ela me viu abraçá-la... então, a gente tem que ter muito cuidado quando fala sobre um deficiente motor (ou intelectual, ou social), na frente de nossos filhos, temos que ter muito cuidado com nossas reações, pois eles estão atentos a tudo...não podemos ensiná-los a segregar.
Faça isso, mesmo que você acredite que está no lado mais forte da população. Porque um dia, vá por mim, você poderá ser uma minoria...você poderá vir a precisar ardorosamente de uma gente mais humana ao seu redor.
Beijos

Um comentário:

  1. Marília, mais uma vez, fiquei emocionada com uma postagem sua... Parabéns pela sua atitude e por nos fazer refletir sobre a melhor maneira de tratar das diferenças com nossos filhos.
    Um abraço!

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