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Vivo dizendo que conviver com crianças "fora do
padrão" é algo que beneficia muito mais aos ditos "normais". E há uns dias atrás, aconteceu algo comigo que materializou bastante essa teoria,
e por isso mesmo, acho válido e até meu dever compartilhar. Confesso que sempre
tenho um pouco de receio de magoar pessoas quando falo de assuntos mais
delicados, mas neste caso, sinto-me um pouco mais confortável, afinal também
tenho um filho "despadronizado", incluído em algum lugar do vasto
espectro autista.
Então, como eu dizia, pessoas precisam aprender a respeitar
pessoas, sejam elas de outra cor, outra religiosidade ou outra região do país; sejam
elas sem um braço ou uma perna, obesas ou esquálidas; sejam elas com síndromes
de Down ou de Asperger, sejam autistas... respeitar quer seja rica, pobre,
mestranda ou analfabeta, masculinas ou masculinizadas, femininas ou
feminilizadas; quer tenham uma opinião diferente sobre aborto, celibato ou política,
quer sejam diferentes...
O que acontece é que muitos adultos (diria, a maioria,
inclusive eu...isso deve ser um exercício diário de cada ser humano) têm
extrema dificuldade de enxergar o outro como "igual", e até mesmo de
entender que um dia pode estar REALMENTE e materialmente no lugar daquele outro,
visto que "o mundo gira" e "o futuro a Deus pertence". Mas
acredito plenamente que esse exercício pode ser facilitado e até espontâneo aos
cidadãos das próximas gerações, se começarmos a viabilizar convivências desde a
infância. Na verdade, esse é um processo natural, e que só não existe há muito
tempo, porque o homem modificou o traçado social, incluiu a segregação em
tipologias, em "panelas"...e isso, como diria a beata "não é de
Deus", e eu complemento: "nem é do homem", eu acredito no
homem...
Neste dia, eu estava com meus filhos (o menino de 6 e a menina de
3) e de repente a Bela* surgiu ao nosso lado e tentou abraçar minha filha, que
entretanto se esquivou de imediato, olhando para seu braço. Logo, ajoelhei-me
procurando me equiparar a altura de ambas, e pedi: "Filha, dê um abraço na
coleguinha". Mas ela se afastou um passo a mais.
Nessas horas, temos apenas décimos de segundos para pensar,
e infelizmente não somos profissionais em psicologia infantil, mas o que me
ocorreu de instante foi abraçar Bela, que não apenas recebeu e retribuiu meu
abraço, como também me beijou a face.
Olhei para minha filha, observadora e inocente, predestinada
a ser lapidada. Tamanha obra de arte seria responsabilidade minha... Senti que
aquele era um momento-marco nesse longo e delicado processo, que é a construção
de seres humanos.
Despedi-me de Bela, que acenava sorridente, enquanto meu
menino (só então percebi) apontava discretamente o polegar para o braço de
Bela, como faria da mesma forma, se visse um cavalo voando no céu, ou uma
novidade qualquer, algo a ser explicado...
Bela é uma menina com um detalhe físico diferente, não tem
uma das mãos... ela já apareceu nas minhas publicações desse blog, e hoje, novamente ela faz parte da nossa história. E apesar do receio de que seus
pais venham a ler este relato e identifiquem sua criança e se sintam magoados
com algo, eu sinto necessidade de persistir nessas linhas, porque eu acredito
que fui vitoriosa na minha batalha, que é falar as coisas certas nas
oportunidades certas, a fim de construir um mundo (ao menos no futuro) mais
humanizado, menos fútil, mais generoso, menos materialista.
Fomos embora dali, mas a lição foi terminada dentro do carro,
na frente da nossa casa. Segui no trajeto de 10 minutos pensando
milimetricamente no que ainda precisava ser dito, sobre o abraço negado por
minha filha, e sobre a estranheza que o braço interrompido ainda causa no meu
filho. E foi algo parecido com o diálogo a seguir:
-Vocês sabem a Bela? Ela é diferente, não tem um dos
braços...
-Não é braço, mamãe. É mão... (Corrigiu-me meu menino)
-Ah, é verdade. Pois então, ela só não tem uma das mãos, mas
é uma pessoa como você, e você (olhei pra minha filha)... ela é igual a gente. Existem pessoas sem
pernas também, ou porque nasceram sem elas, ou porque a perderam em um acidente
de carro, por exemplo. (E diante da nuvem pensativa que visualizei nos olhos do
meu filho, detalhei um pouco mais a explicação...) Quando alguém sofre um
acidente de carro, pode se machucar bastante, sua perna ficar ferida...
machuca, sai sangue, e as vezes perde a perna. Mas isso não aconteceu porque ele
quis, foi um acidente. E assim mesmo esse alguém continua sendo a mesma pessoa
de antes, a perna sara, deixa de doer, mas continua sem a perna. (depois de
confirmar no seu olhar que a informação tinha sido compreendida até ali,
continuei...) A Bela não tem uma mão, não foi escolha dela não ter uma mão, e
ela pode ficar triste por você apontar pra o braço dela...
E ele falou "Mamãe, eu só quis mostrar a você que ela
não tinha uma mão"...
-Eu sei, meu filho, a mamãe entendeu. Mas eu queria que vocês entendessem
também que ela é igual a vocês. Ela pode se divertir, brincar, correr, sorrir,
ser amiga...
Então, ele sempre questionador, ao lado de minha caçula que
apenas escutava, me perguntou preocupado:
-Mamãe! ... e se ela precisar da mão?
-Ela poderá usar sua outra mão, filho...
-E se ela precisar das duas mãos???
-Aí...ela poderá pedir ajuda de um amigo, como você... (e
ele sorriu) Daí pra frente, foi um gancho de aproveitamento em causa própria)
Por isso é importante a gente ter amigos filho, porque um dia podemos precisar
da ajuda de alguém...
Enquanto eu os tirava do seus assentos, ele descobriu com a
felicidade característica de sempre: "Mamãe, eu já sei! Minha
diferença é que eu não falo direito!"... e eu tive que confirmar, ele não deixava de ter razão... Mas ele perguntou: "Qual a diferença da "Ía" (como chama a irmã)
?
Nessa hora, o esforço por uma resposta foi o maior da jornada, mas respondi
mediocremente, entre risadas:
-É que sua irmã chora muito, não é, minha filha? - Respondi
me dirigindo a minha pequena, que não ficou muito satisfeita, mas foi o que consegui encontrar, como eu disse, mediocremente...
E você? O que te faz diferente?
* Bela é um nome imaginário, denominado pela autora deste
texto
EDITADO POSTERIORMENTE:
Dando prosseguimento nessa postagem, tenho que contar o
resultado do meu abraço na "Bela" e da conversa... Isso aconteceu na
sexta-feira, e hoje, terça-feira, a Bela veio abraçar minha filha novamente, e
minha filha a ABRAÇOU com todos os braços que um belo e sincero abraço
merecem....e sinceramente eu fiquei emocionada, foi mais rápido do que eu
imaginava, e nunca vou esquecer disso, até pra deixar bem comprovado pra mim
como mãe, que nada mais valioso que o exemplo!
Sem falsa demagogia, gente, vamos construir seres humanos melhores pras
próximas gerações...eu estou empenhada nisso, o que estiver ao meu alcance eu
farei... e não falo de ter pena de ninguém, pois ninguém é digno de pena (ou
todo mundo seria digno de pena, talvez fosse a expressão correta), mas como
seria bom, se os filhos autistas, cadeirantes, surdos, mudos, downs, pudesse
ser abraçados sem pena, pudessem ter seu potencial à frente de suas
deficiências, se pudessem ser valorizados e amados... e aquele abraço que minha
filha deu nela, não teve medo, nem pena, foi sincero...ela quebrou a estranheza
que sentiu antes, porque eu tirei o medo dela, quando ela me viu abraçá-la...
então, a gente tem que ter muito cuidado quando fala sobre um deficiente motor
(ou intelectual, ou social), na frente de nossos filhos, temos que ter muito
cuidado com nossas reações, pois eles estão atentos a tudo...não podemos
ensiná-los a segregar.
Faça isso, mesmo que você acredite que está no lado mais forte da população.
Porque um dia, vá por mim, você poderá ser uma minoria...você poderá vir a
precisar ardorosamente de uma gente mais humana ao seu redor.
Beijos