Querida Marília,
Hoje cedo eu fiz algo que te
alarmaria muito, se tivesse acontecido há uns cinco anos atrás: Peguei a faca do queijo coalho e cortei uma
fatia do Bolo de Chocolate da caçula alérgica a leite e ela o comeu completo. E
você não acreditaria que agora, na casa de minha mãe, eles ficam lado a lado na
mesa: o bolo sem leite e o queijo! São tantas coisas, minha cara, que você
custaria a crer que um dia eu fui você... a margarina sem leite é compartilhada
com toda a família, ora entra uma faca que acabou de cortar o famigerado
queijo, ora sai dela uma colher pra temperar a comida da "minha"
filha (minha, porque não é mais sua, pois definitivamente, eu não sou mais
você). Outra: a bucha de lavar pratos, faz muito tempo que é a mesma que limpa
os utensílios de iogurte! Aliás, na geladeira da minha casa, você vai encontrar
iogurte, requeijão, e outras coisinhas, sem medo, afinal minha
pequena é tão consciente. Desnecessário aquela rigidez
que você tinha na época que o primogênito tinha alergia a leite...Tá certo que
ele era muito sensível, que ficou o trauma da anafilaxia aos 6 meses de vida, que
cansou de todas as vezes que ele saía com a pele empolada de um brinquedo do play,
ou da cadeirinha do carrinho de mercantil, ou dos braços do avô, da avó, do
tio...sei que você tinha muitas inseguranças e poucas respostas, mas hoje, te
asseguro: você poderia ter relaxado mais, aproveitado mais as festas, as casas
dos amigos, os filhos dos seus amigos, as piscinas!, as viagens...ah, as viagens... você mal
via a cidade que visitava, mal aproveitava a cama do hotel, estava sempre a
preparar almoço da panela elétrica, lavando louça na pia do banheiro,
descongelando jantar pra levar pro passeio seguinte..."aff" tadinha! Dá pena...
Semana passada, viajamos pra
Gramado, eu, o marido, e as duas crianças. Lembra da última vez que fomos pra
lá? Só o mais velho era nascido, ele tinha 2 aninhos, auge da Marília-Neura. Não visitamos as fábricas de chocolate (só de pensar em respirar aquele ar você já tremia, só andava com a mão na adrenalina auto-injetável), não experimentamos a gastronomia maravilhosa gaúcha, restou pouquíssimo tempo para os passeios (a velha produção alimentar de panela elétrica e a imensa bagagem). Hoje ele já está com sete anos e tem uma irmã de quatro. Há um ano ele curou do
leite, ou seja, há um ano, descobri que ele estava curado, porque pode ter sido
antes disso... Ele também já come produtos com ovo, mas só processado! Porque
depois que eu relaxei, sabendo que já estava curado do leite, comecei a
oferecer produtos das festas, das lanchonetes, restaurantes...claro que alguns
tinham não só traços de ovo, como o próprio ovo! Mas um dia, apenas uma única
vez, deu errado. Ele tomou um sorvete e reagiu (até forte) com urticária...daí
tive certeza, ele ainda não estava curado da alergia ao ovo cru, porque era o
que tinha no tal sorvete: clara crua de ovo. Mas não recuei, segui firme e continuei oferecendo
alimentos "da rua", até que tomei a atitude mais corajosa de todos os
tempos: Cansada de tanto desmarcar os testes de provocação oral na
alergologista dele (ora por causa de uma virose, ora por causa de um
antialérgico), ofereci um alimento que eu tinha a certeza que tinha ovo,
feito em casa. Deu certo, nenhuma reação. Daí certo dia EU-FRITEI-UM-OVO, e ele
comeu TODO! Advinha? ADOROU! Lindo, sem marcas na pele, sem coceiras...
Fiquei lembrando de você nesse
dia, Marília. Sabe o que você achava que iria fazer quando isso acontecesse?
Quando pudesse preparar para o seu filho sua grande especialidade culinária da adolescência "Farofa de Bolacha Cracker com ovo frito"? Você achava que seria o
dia mais feliz do mundo, que mandaria rezar uma missa de ação de graças,
escrever um depoimento emocionante de 3 páginas... Mas você só seguiu para o
dia seguinte, sem missa, sem depoimento, nem a médica você contou...
Então, hoje, ainda temos a
moçinha mais nova alérgica a leite, apesar de que tenho dúvidas se é a leite mesmo.
Ainda não testei soja, nem carne também. Mas já come milho sem reações e já
está no leite com proteína extensamente hidrolisada e com lactose. Não tenho
pressa de fazer o próximo teste, porque nossa vida tá muito tranquila agora, minha
cara. Não tenho medo de viajar, de passear, de visitar os amigos, de ir nas
festas...ela come traços e traços, faz exatamente tudo que qualquer criança
faz, e um dia quem sabe, essa alergia fica enterrada definitivamente na nossa
história.
Pra terminar, quero te dizer que
você foi importante pra mim. Se você não tivesse existido, eu não teria o
parâmetro pra comparar com a Marília que sou hoje, eu não saberia que você foi
um erro...claro, um erro querendo acertar, que deixou de viver tanta coisa, que
sofreu sem precisar sofrer...mas que bom, você ficou pra trás, e de você não
sinto nem um caroço de saudade. Sou melhor assim, os meninos estão melhores sem
você, estão muito bem comigo.
E se a Marília de hoje pudesse ter te enviado essa carta há pelo menos cinco anos atrás, ela te daria este conselho: "Arrisque. Tente até que faça mal. Só recue se fizer mal. Mas arrisque, tente, e não deixe de viver, porque morrer também é matar os momentos felizes que você deixa de viver, por medo."
Até nunca mais...
Ass.: Marília (sem Neura).